Não vem das obras, para que ninguém se glorie;
Efésios 2:9
Introdução:
Se
Abraão tivesse saído do meio de sua parentela e fosse habitar as regiões de
Canaã sem que Deus lhe ordenasse, a sua decisão não seria por fé. Se Abraão
tivesse decidido, de moto próprio, oferecer Isaque em holocausto a Deus, sem
que Deus houvesse ordenado, o seu sacrifício não seria por fé e sua atitude não
seria em função de uma provação (Hebreus 11.17). Na maioria dos comentários
bíblicos, em que os termos ‘fé’ e ‘obras’ aparecem, a palavra ‘paradoxo’ acaba
sendo utilizada. Há até quem afirme que no Novo Testamento há inúmeros
"paradoxos aparentes".
O que é
um paradoxo?
Segundo
definição que consta na Wikipédia:
“Paradoxo
é uma declaração, aparentemente, verdadeira, que leva a uma contradição lógica,
ou, a uma situação que contradiz a intuição comum. Em termos simples, um
paradoxo é "o oposto do que alguém pensa ser a verdade". A
identificação de um paradoxo, baseado em conceitos aparentemente simples e
racionais tem, por vezes, auxiliado, significativamente, o progresso da
ciência, filosofia e matemática”. Wikipédia.
Diante
dessa definição de paradoxo: ‘declaração aparentemente verdadeira’, é correto
entender que as asserções bíblicas são ‘aparentemente’ verdadeiras? Os dois
versículos abaixo, são a exata expressão da verdade ou, ‘aparentemente’
verdadeiros?
"Assim
como Abraão creu em Deus, isso lhe foi imputado como justiça" (Gálatas 3.6);
“Porventura,
o nosso pai Abraão não foi justificado pelas obras, quando ofereceu sobre o
altar o seu filho Isaque?” (Tiago 2.21).
Os
versos acima são paradoxais? Há contradição entre o ensinamento do apóstolo
Paulo e do irmão Tiago? A doutrina de Cristo possui pontos aparentemente
discordantes? São ensinos aparentemente verdadeiros?
A
palavra de Deus não é uma declaração aparentemente verdadeira, antes, é a
verdade "Santifica-os na tua verdade; a tua palavra é a verdade" (João
17.17), portanto, os ensinamentos bíblicos, não comportam essa definição de
‘paradoxo’.
Na
comunicação falada ou escrita há ‘paradoxos’, porém, tais paradoxos são figuras
de pensamento, um dos recursos linguísticos (figuras de linguagem) que tornam
uma mensagem mais expressiva, que nada mais é do que uma proposição construída,
através da união de ideias contraditórias.
Quando
Jesus propôs a Nicodemos que era necessário nascer de novo, o alerta de Jesus
era verdadeiro, entretanto, por desconhecer a natureza daquilo que Jesus
propôs, surgiu na cabeça de Nicodemos um paradoxo: Como é possível um homem
nascer, sendo velho? (João 3.4)
A mensagem
de Jesus não era contraditória e nem aparentemente verdadeira, mas a limitação
de Nicodemos que, sendo mestre, não compreendeu a mensagem, é que levou a
questionar, sobre como seria possível um homem velho, nascer de novo.
Abraão
foi salvo pela ‘fé’ ou, por ‘obras’? Há contradição entre a ‘fé’ e as ‘obras’,
ou, a contradição decorre da má compreensão?
Abraão
creu em Deus
Assim
como Abraão creu em Deus, isso lhe foi imputado como justiça (Gálatas 3.6)
Como
ler esse versículo? A ‘confiança’ de Abraão é o que o justificou? O que dizer
do versículo: ‘O justo viverá da fé?’
Quando
o apóstolo Paulo escreveu, repreendendo os cristãos da Galácia, sobre o
fascínio que os levou a se desviarem da verdade do evangelho, lembrou que
anunciou aos Gálatas o Cristo crucificado (Gálatas 3.1; 1 Coríntios 1.23), e
que não receberam o espírito pelas ‘obras da lei’, antes pela ‘pregação da fé’
(Gálatas 3.2 e 5).
Que
‘espírito’ eles receberam pela ‘pregação da fé’? O espírito que o apóstolo
Paulo faz referência, diz do evangelho, a palavra de Deus, vez que os cristãos
são ministros do espírito, ou seja, ministros da justiça, ministros da nova
aliança: “O qual, nos fez, também, capazes de ser ministros de um novo
testamento, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata e o espírito
vivifica (...) Como não será de maior glória o ministério do Espírito? Porque,
se o ministério da condenação foi glorioso, muito mais excederá em glória o
ministério da justiça” (1Corintios 3.6 e 8-9).
Jesus
afirmou que as palavras d’Ele são espírito e vida: "O espírito é o que
vivifica a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos disse são espírito
e vida" (Joao 6.63).
A
mensagem do evangelho é cumprimento do anunciado pelos profetas: água sobre o
sedento, espírito derramado. É por isso que o homem nasce de novo, somente pela
água e pelo espírito: "Porque derramarei água sobre o sedento e rios sobre
a terra seca; derramarei o meu Espírito sobre a tua posteridade e a minha
bênção sobre os teus descendentes" (Isaias 44.3). "E há de ser que,
depois derramarei o meu Espírito sobre toda a carne e vossos filhos e vossas
filhas profetizarão, os vossos velhos terão sonhos, os vossos jovens terão
visões" (Joel 2.28; Joao 3.5).
Como
Deus dá do seu espírito? Como Deus opera milagres? O apóstolo Paulo afirma que
Deus deu o seu espírito e opera milagres pela ‘pregação da fé’, ou seja,
através do evangelho (Gálatas 3.5). Cristo foi ungido para evangelizar, ou
seja, o espírito de Deus estava sobre Ele, o mesmo espírito foi dado aos
cristãos pela pregação da fé. “Amados, procurando eu escrever-vos com toda a
diligência acerca da salvação comum, tive por necessidade escrever-vos e
exortar-vos a batalhar pela fé que uma vez foi dada aos santos” (Judas 1.3; Isaias
11.1-3; Isaias 61.1-3).
O evangelho
foi anunciado pelo apóstolo Paulo aos gentios, de modo que ele era ministro do
evangelho, anunciando a ‘fé’ (evangelho) entre os gentios. "Se, na
verdade, permanecerdes fundados e firmes na fé e não vos moverdes da esperança
do evangelho que tendes ouvido, o qual foi pregado a toda criatura que há
debaixo do céu, e do qual eu, Paulo, estou feito ministro" (Colossenses 1.23;
Romanos 1.8).
A ‘fé’
se refere à mensagem das boas novas, o espírito derramado sobre toda carne, o
mesmo espírito do qual o apóstolo Paulo foi constituído ministro. A ‘fé’ diz do
evangelho anunciado a toda criatura, que há debaixo do sol (judeus e gentios),
esperança anunciada para que os homens creiam e sejam salvos: "Porque, se
alguém for pregar-vos outro Jesus que nós não temos pregado, ou se recebeis
outro espírito que não recebestes, ou outro evangelho que não abraçastes, com
razão o sofrereis" (2corintios 11.4).
O
crente é salvo ao crer na ‘loucura da pregação’, mas a salvação decorre
especificamente da ‘loucura da pregação’, que é Cristo crucificado, que para os
judeus era escândalo e para os gregos, loucura "Visto como na sabedoria de
Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os
crentes pela loucura da pregação" (1corintios 1.21-23).
O poder
para a salvação não está na capacidade do homem de acreditar, mas, sim, na
mensagem pregada. Para aqueles que são salvos, a palavra da cruz é o poder de
Deus: “Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus
para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu e também do grego” (Romanos
1.16; 1corintios 1.18).
Deus
salva pela ‘loucura da pregação’, ou seja, pela fé. Para ser salvo, é
imprescindível ouvir a palavra da verdade, pois, no evangelho, está o poder
para que o homem seja feito filho de Deus (Joao 1.12; Efésios 1.13). O homem é
justificado pela fé, ou seja, por Cristo, pelo evangelho. "E de tudo o
que, pela lei de Moisés, não pudestes ser justificados, por ele é justificado
todo aquele que crê" (Atos 13.39).
Acerca
da salvação em Cristo, foi predito a Abraão: ‘Todas as nações serão benditas em
ti’ (Gálatas 3.8). O apóstolo Paulo, ao ler Gênesis 12, verso três, interpretou
essa passagem bíblica como uma profecia, acerca de como Deus haveria de
justificar os gentios: pela fé, ou seja, por meio de Cristo – a fé que havia de
se manifestar: "Ora, tendo a Escritura prevista que Deus havia de
justificar, pela fé, os gentios, anunciou primeiro o evangelho a Abraão,
dizendo: Todas as nações serão benditas em ti" (Gálatas 3.8) compare com (Gálatas
3.23).
Por que
os gentios seriam benditos em Abraão? Por causa do descendente prometido a
Abraão: Cristo. O descendente prometido a Abraão foi estabelecido como luz para
todos os povos, não o patriarca (Isaias 42.6; Isaias 49.6). Cristo é a fé
manifesta, na plenitude dos tempos, por quem os homens são justificados e não o
patriarca (Gálatas 3.23-25).
O
apóstolo Paulo apresenta Abraão como exemplo de alguém que foi justificado, ao
crer em Deus (Gálatas 3.6). Mas, como Abraão confiou em Deus? Deus ordenou a
Abraão que deixasse a sua parentela e partisse para uma terra que seria
revelada e lhe fez uma promessa: Abraão seria uma grande nação e os seus
descendentes seriam inumeráveis, assim como as estrelas do céu, apesar de
Abraão não ter descendente, na época (Genesis 15.4-5).
Abraão
demonstrou que confiou em Deus, quando saiu do meio da sua parentela, porém, a
bênção de Abraão não decorre do fato de ele ter saído do meio da sua parentela
(confiança), antes, Abraão foi abençoado porque foi estabelecido que, se ele
saísse do meio da sua parentela, Deus haveria de abençoá-lo grandemente. A
bênção está na palavra que diz: ‘E far-te-ei uma grande nação e abençoar-te-ei
e engrandecerei o teu nome; e tu serás uma bênção’ (Genesis 12.2).
A força
da salvação está na promessa de que Deus haveria de abençoar os gentios,
através do descendente de Abraão e não em Abraão ter saído do meio da sua
parentela. Semelhantemente, a força do pecado está na lei que estabelece:
‘certamente morrerás’, não nas ações dos pecadores: "Ora, o aguilhão da
morte é o pecado e a força do pecado é a lei" (1corintios 15.56).
Quando
Ló se apartou de Abraão, Deus indicou ao patriarca qual a terra que os seus
descendentes haveriam de herdar, em função do que lhe foi prometido, caso
saísse do meio dos seus parentes. (Genesis 13.15-16)
Por
isso, é dito pelo escritor aos Hebreus que, pela fé, ou seja, pela palavra de
Deus, Abraão, sendo chamado para um lugar que havia de receber por herança,
obedeceu e saiu (Hebreus 11.8). O fato de Abraão ter saído, indica que ele creu
na palavra de Deus. Pela fé, ou seja, por causa da palavra de Deus, Abraão
peregrinou na terra da promessa, como que em terra alheia (Hebreus 11.9).
Se
Abraão tivesse saído do meio de sua parentela e fosse habitar as regiões de
Canaã sem que Deus lhe ordenasse, a sua decisão não seria por fé. Se Abraão
tivesse decidido, de moto próprio, oferecer Isaque em holocausto a Deus, sem
que Deus houvesse ordenado, o seu sacrifício não seria por fé e sua atitude não
seria em função de uma provação (Hebreus 11.17).
Quando
lemos que Abraão foi justificado pela fé, significa que Abraão foi justificado
pela palavra de Deus. É por isso que é dito que a fé foi imputada [2] a Abraão
(Romanos 4.9). O que foi conferido a Abraão? Uma capacidade de crer? Não! O que
foi imputado a Abraão foi a fé, a palavra de Deus, que é fato, prova, sem
tergiversações.
A
capacidade de crer é pertinente a todos os homens. É um atributo natural do ser
humano, acreditar no que é real, verdadeiro, firme, palpável, etc. O que foi
dado a Abraão foi a fé, ou seja, uma promessa graciosa e firme (Romanos 4.16).
Abraão acreditou em Deus, por não atentar para a condição do seu corpo
amortecido ou, para o amortecimento do ventre de Sara, e sim, se deixou
fortificar pela palavra que lhe foi anunciada: fé! (Hebreus 11.19-21)
A
certeza de Abraão não surgiu de suas próprias convicções, antes pela palavra da
fé que lhe disse que haveria de ser abençoado, caso obedecesse. De posse da
palavra de Deus, teve certeza que Aquele que prometeu, era poderoso para
cumprir (Romanos 4.21). Ao sair do meio de sua parentela, Abraão estava
admitindo, através da sua ação, que Deus é fiel e poderoso para cumprir o que
prometeu, pelo que ‘... isso lhe foi imputado para justiça’ (Romanos 4.22);
"Assim como Abraão creu em Deus, isso lhe foi imputado como justiça"
(Gálatas 3.6).
Ao sair
do meio da sua parentela, Abraão estava admitindo, por meio de sua ação, que
Deus é fidedigno [3], ou seja, digno de ‘fé’ (πιστευω - pisteuo), digno de ‘confiança’,
pela sua própria glória e virtude (2 Pedro 1.3).
É na fé
(πιστις - pistis), ou seja, na palavra de Deus que há poder. Foi pela palavra
de Deus que Sara recebeu poder de conceber um filho, mesmo sendo estéril e de
avançada idade. Quando é dito que ‘... Pela fé, a própria Sara recebeu poder...
’, o termo ‘fé’ não diz das convicções de Sara, antes aponta para a fidelidade,
a lealdade, o caráter de alguém em quem se pode confiar. A crença de Sara
resume-se em ‘ter por fiel’ aquele que havia feito a promessa (Hebreus 11.11).
Foi
pela palavra de Deus que os antigos alcançaram bom testemunho, pois sem a
palavra de Deus, nada podiam esperar ou acreditar (Hebreus 11.1). A Bíblia diz
que Abraão é o Pai da fé, pois o evangelho foi primeiramente anunciado a Ele: a
vinda do Cristo em quem todas as famílias da terra seriam bem-aventuradas, e
não porque Ele creu, até porque existiram heróis da fé antes do patriarca
Abraão.
Abraão
foi salvo pela ‘fé’, porque ‘creu’ em Deus, por causa do que lhe foi dito (fé):
“(Como
está escrito: Por pai de muitas nações te constituí) perante aquele no qual
creu, a saber, Deus, o qual vivifica os mortos e chama as coisas que não são
como se já fossem. O qual, em esperança, creu contra a esperança, tanto que ele
tornou-se pai de muitas nações, conforme o que lhe fora dito: Assim será a tua
descendência” (Romanos 4.17-18).
Deus
deu a sua palavra e Abraão creu em Deus, que vivifica os mortos e chama as
coisas que não são, como se já fossem, ou seja, Deus é poderoso para realizar o
que prometeu, portanto, digno de confiança. Ao crer, Abraão tornou-se pai de
muitas nações, isto conforme a palavra de Deus que diz: Assim será a tua
descendência!
‘Fé’ e
‘crer’
Durante
a leitura das cartas paulinas, verifica-se que o substantivo fé (πιστις -
pistis) e o verbo crer (πιστευω - pisteuo) são empregados, quase que o mesmo
número de vezes, por volta de 244 ocorrências e aquele, por volta de 243 vezes,
sem falar no termo fé como adjetivo (πιστός – pistos), que ocorre 67 vezes.
Apesar
de ser equivalente, o número de vezes que os termos πιστις e πιστός são
empregados, vale destacar que o substantivo πιστις (pistis), quando empregado
pelo apóstolo Paulo, em várias ocasiões, assume uma conotação especifica.
Geralmente,
a definição de πιστις [4] nos dicionários, aponta para as disposições internas
do indivíduo, ou seja, para questões de cunho subjetivo: convicção. Porém, ao
fazer uso do termo, o apóstolo Paulo, na maioria das vezes, o faz como figura
de linguagem, uma metonímia [5].
Como
Cristo é o autor e consumador da fé (Hebreus 12.2), o substantivo fé é
utilizado para fazer referência à pessoa de Cristo e à sua doutrina, havendo
substituição do autor (Cristo) pela sua obra (fé).
Quando
é dito pelo apóstolo Paulo que, ‘em todo o mundo é anunciada a vossa fé’ (Romanos
1.8), o termo foi utilizado para fazer referência à doutrina de Cristo, ou
seja, o evangelho. Quando é dito que ‘antes que a fé viesse’, ou ‘aquela fé que
havia de se manifestar’ (Gálatas 3.23), o substantivo fé foi empregado para
fazer referência à pessoa de Cristo.
Quando
é dito que o homem é justificado pela fé, na verdade, o apóstolo está
declarando que o homem é justificado por Cristo. Quando é dito que o homem é
salvo pela graça de Deus, por meio da fé, na verdade, o apóstolo está
esclarecendo que Cristo é o dom inefável de Deus, e que, através d’Ele, o homem
é salvo (Efésios 2.8).
Por que
devemos fazer essa análise? Porque, quando emprega o substantivo ‘fé’, em sua
epístola, o irmão Tiago o faz, somente com um único significado: crer,
portanto, apontando, apenas, para as disposições internas do indivíduo,
diferentemente do apóstolo Paulo, que emprega o termo, tanto no sentido de
‘doutrina’, quanto no sentido de ‘crer’.
Observe
essa definição:
“A fé é
mais do que uma crença intelectual em Deus. Se essa crença não nos leva a uma
santa vida de justiça e misericórdia, ela não é a fé salvadora (Mateus
7.21-23)” Radmacher, Earl; Allen, Ronald B.; House, H. Wayne, O novo comentário
bíblico NT, com recursos adicionais - A Palavra de Deus ao alcance de todos.
Rio de Janeiro, 2010, pág. 675.
De que
‘fé’ o autor está falando? De um corpo doutrinário, ou de crer?
Se a
‘fé’, em análise pelos editores do ‘O novo comentário bíblico do NT’, refere-se
ao evangelho, efetivamente, por meio do evangelho (fé), o homem recebe poder de
ser feito filho de Deus, portanto, é de novo criado, em verdadeira justiça e
santidade (Efésios 3.23). Está acima de uma crença intelectual em Deus, antes é
a palavra de Deus pela qual o homem é santificado: "Santifica-os na tua
verdade; a tua palavra é a verdade" (João 17.17).
Se eles
abordaram a ‘fé’, no sentido de ‘crer’, ‘acreditar’, tal fé não pode ser nada,
além de uma crença intelectual na palavra de Deus. Quando o homem crê em
Cristo, na verdade, exerce uma crença intelectual em Deus, conforme o Seu
testemunho, exarado nas Escrituras. Deus deu testemunho do seu Filho nas
Escrituras e crer nas Escrituras é exercer um culto racional.
Não é o
crer, que leva o homem a uma ‘santa vida de justiça’, antes é a fé manifesta –
Cristo - que santifica os que creem, concedendo-lhes uma nova vida: santa e
justa. É a verdade, a ‘fé’ que santifica, e não o crer: "E por eles me
santifico a mim mesmo, para que também eles sejam santificados na verdade"
(João 17.19). Os equívocos quanto ao significado do termo ‘fé’, leva ao
entendimento errôneo de que o dever de andar como filhos da luz
(comportamento), diz de uma fé que ‘... é mais do que uma crença intelectual’.
A obra
de Abraão
“Porventura
o nosso pai Abraão não foi justificado pelas obras, quando ofereceu sobre o
altar o seu filho Isaque?” (Tiago 2.21)
Comparando
a escrita do apóstolo Paulo com a do irmão Tiago, percebe-se que, por causa do
público alvo da carta, há uma mudança gritante no emprego de alguns termos, sem
falar que o apóstolo Paulo, ao escrever, utiliza diversos recursos linguísticos
de estilo, enquanto Tiago, pela graciosidade poética da sua epístola, fez uso
somente de figuras e parábolas.
Quando
Tiago diz ‘a prova da vossa fé’, diz da confiança do homem que é posta à prova,
e não da palavra de Deus, que é simultaneamente fundamento e prova. Se o homem
é provado e permanece confiante, a confiança transforma-se em ‘perseverança’.
"Todo aquele que prevarica e não persevera na doutrina de Cristo, não tem
a Deus. Quem persevera na doutrina de Cristo, esse tem, tanto o Pai, como o
Filho" (2 João .:9; Tiago 1.3).
O não
crente precisa crer para ser salvo e o salvo precisa portar-se de modo digno do
evangelho e perseverar na fé, combatendo o bom combate: "Tem cuidado de ti
mesmo e da doutrina. Persevera nestas coisas; porque, fazendo isto, te
salvarás, tanto a ti mesmo, como aos que te ouvem" (2 Timoteo 4.16);
"Somente deveis portar-vos dignamente conforme o evangelho de Cristo, para
que, quer vá e vos veja, quer esteja ausente, ouça acerca de vós, que estais
num mesmo espírito, combatendo, juntamente, com o mesmo ânimo, pela fé do
evangelho" (Filipenses 1.27).
Se
alguém vai pedir algo a Deus, deve pedir com fé, ou seja, acreditando, crendo
(Tiago 1.6). O termo ‘fé’, foi empregado por Tiago, no sentido de ‘crer’,
diferentemente do apóstolo Paulo que, muitas vezes, emprega o termo, no sentido
de evangelho, doutrina.
Mas,
por questões de estilo e escrita, há divergências entre o exposto pelo apóstolo
Paulo e Tiago? Não! A má compreensão da exposição é que leva as divergências,
não o conteúdo doutrinário exposto por eles.
O
apóstolo Paulo afirma que o evangelho é poder de Deus para salvação (Romanos 1.16),
enquanto que Tiago, por sua vez, afirma que a palavra implantada nos cristãos é
poderosa para salvar (Tiago 1.21). Sem contradição alguma a exposição de ambos!
Entretanto,
a linguagem utilizada por eles é diferente, em alguns aspectos, apesar de a
doutrina não ser divergente, e, isto se dá em função do público alvo da
mensagem. Observe que o apóstolo Paulo
diz que o evangelho é poder de Deus para a salvação ‘de todo aquele que crê’ e
o irmão Tiago, em vez de dizer que é necessário crer, aponta a necessidade de
cumprir a palavra, ou seja, de ‘ser executor da obra’ (Tiago 1.25).
‘Acreditar’
e ‘crer’ são verbos que melhor se adequam à realidade dos gentios, enquanto a
linguagem dos judeus traduz a ideia de que, quem crê em Deus, é executor de um
‘trabalho’, de uma ‘obra’.
A
linguagem do Antigo Testamento aponta o obediente, como aquele que crê,
acredita, daí a linguagem dos judeus em identificar ao que obedece, ou seja,
quem é executor do que é ordenado por Deus, como quem crê. A linguagem do irmão
Tiago evidencia a sujeição do crente e o senhorio de Deus, e a linguagem do
apóstolo Paulo evidencia a condição de quem é livre no Senhor.
Entretanto,
é imprescindível ao leitor notar a diferença da abordagem paulina da do irmão
Tiago. Abordagem do apóstolo Paulo no verso 16 de Romanos 1 possui viés
evangelístico, e a abordagem no verso 21 do capítulo 1 de Tiago possui viés
exortativo. Este aborda a necessidade de os cristãos perseverarem firmes na
palavra neles implantada, enquanto que, aquele, enfatiza a universalidade do
evangelho: todo aquele que crê tanto judeus quanto gentios.
A
linguagem de Tiago é a mesma de Cristo, pois é própria aos judeus. Quando a
multidão perguntou a Jesus qual era a obra de Deus para realizarem, Jesus
respondeu que a obra de Deus é crer naquele que Ele enviou (João 6.28-29). O
executor da obra, que é bem-aventurado em seu feito, diz de quem crê em Cristo,
pois a lei perfeita, a da liberdade, diz do evangelho, a palavra poderosa para
salvar: “Aquele, porém, que atenta bem para a lei perfeita da liberdade, e
nisso persevera, não sendo ouvinte esquecidiço, mas fazedor da obra, este tal
será bem-aventurado no seu feito” (Tiago 1.25).
Tiago
escreveu aos servos de Cristo das doze tribos da dispersão, ou seja, aos
cristãos convertidos do judaísmo (Tiago 1.1). Mas, entre esses cristãos, havia
aqueles que diziam crer em Deus e cuidavam ser religiosos e não se sujeitavam a
Cristo, consequentemente, a mensagem de Tiago enfatiza o que foi dito por Jesus
aos seus discípulos: "... credes em Deus, crede também em mim" (João
14.1).
Daí o
questionamento de Tiago nos versos 14 a 26, do capítulo 2, da sua epístola:
“Que aproveito há se alguém disser que tem fé e não tiver obras?” (Tiago 2.14).
O termo ‘fé’ foi utilizado no sentido de ‘crer’, conforme o verso 19: “Crês tu
que Deus é um só?”, e não no sentido de ‘evangelho’, ‘doutrina’, como quando o
apóstolo Paulo diz que acabou a carreira e guardou a ‘fé’ (2 Timóteo 4.7).
Que
proveito teriam os discípulos ao ‘crerem em Deus’ e não crerem em Cristo?
Poderia tal fé salvar os discípulos? Não! Pois qualquer que diz crer em Deus,
deve crer naquele que Ele enviou: "E Jesus clamou e disse: Quem crê em
mim, crê não em mim, mas naquele que me enviou" (João 12.44).
O termo
‘fé’, utilizado por Tiago, não faz referência ao evangelho e nem a Cristo, bem
como o termo ‘obras’ no contexto, não faz referência à lei de Moisés. O termo
‘fé’ foi utilizado para fazer referência a uma crença em uma doutrina ou
pensamento diverso da doutrina do evangelho de Cristo (Tiago 3.19), e o termo
‘obras’ foi utilizado para fazer referência à lei perfeita, a da liberdade, e
não às obras da lei de Moisés (Tiago 1.22 e 25).
Acreditar
que Deus é um só não salva, da mesma forma que não salva acreditar que o homem
pode ser salvo por ser descendente da carne de Abraão ou, pela circuncisão. Os
judeus acreditavam que nunca foram escravos de ninguém, mas tal ‘fé’ não os
tornava livres do pecado (João 8.33). Há quem creia em Cristo, como alguns
judeus, mas segundo a concepção do seu coração enganoso. Embora esta pessoa
tenha ‘fé’ (creia), tal fé é sem proveito para a salvação, ou seja, não os faz
livres do pecado: “Jesus dizia, pois, aos judeus que criam nele: Se vós
permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos” (João
8.31).
Muitos
judeus criam em Cristo, mas quando arguidos, continuavam confiados que eram
livres por serem descendentes de Abraão (João 8.31 e 39). Poderia tal ‘fé’
salvá-los? Pode alguém ser salvo, por crer na existência de Deus? Não!
Neste
sentido, que proveito há, se alguém diz que tem fé, mas não crê em Jesus? Que
proveito há em dizer que conhece a Deus, se não guardar o Seu mandamento? Tal
pessoa é mentirosa e nela não está a verdade (1 João 2.3-5). Que proveio há em
dizer: ‘nunca fomos escravos de ninguém’, se não é liberto pela verdade? (João
8.31-32)
O irmão
Tiago não estava questionando se há proveito em ter fé em Cristo, ou seja, se
quem crê em Cristo não será salvo, pois é evidente que quem crê em Cristo será
salvo (1 João 5.13). A fé em Cristo pode salvar o crente, pois, acerca de
Cristo, testemunharam todos os profetas, de que recebem o perdão dos pecados,
todos os que creem n’Ele (Atos 10.43). Por Cristo é justificado todo aquele que
crê, ou seja, qualquer que tem fé n’Ele (Atos 13.39).
A
abordagem de Tiago, em relação àqueles que diziam que tinham fé, é a mesma que
fez o apóstolo Paulo, ao escrever a Tito, quando disse: “Professam conhecer a
Deus, mas o negam pelas suas obras...” (Tito 1.16). É sem proveito dizer que se
conhece a Deus, ou dizer que se tem ‘fé’, se esse alguém não guarda o seu mandamento
(1 João 2.4). E qual é o mandamento a cumprir, para que o homem passe a
conhecer a Deus? Que creia em Cristo, no nome do Filho de Deus (1 João 3.23),
pois, o que guarda esse mandamento, permanece em Deus e Deus nele (1 João 3.24;
Gálatas 4.9).
Qual a
obra que o homem deve realizar? Crer em Cristo! (João 6.28-29). É sem valor
algum, professar que se conhece a Deus, mas não se crê em Cristo, ou seja, se o
nega pelas obras. Cristo é salvação para todos quantos O obedecem, portanto,
Ele salva quem realiza a sua obra: "E, sendo ele consumado, veio a ser a
causa da eterna salvação para todos os que lhe obedecem" (Hebreus 5.9).
O
questionamento de Tiago só é compreendido quando o leitor perceber que a obra a
qual ele fez referência diz da obra de Deus, que é crer em Cristo e não das
obras decorrentes da lei: guardar os sábados, a circuncisão, dias, luas, etc.
Aquele que diz que crê em Deus, se não crê em Cristo, a obra exigida por Deus,
tal ‘fé’ é morta em si mesma (Tiago 2.17).
Ao ler
esta passagem de Tiago, tem que se ter em mente que, quem crê em Cristo, não
crê somente em Cristo, mas também em Deus e vice-versa: “E Jesus clamou e
disse: 'Quem crê em mim, crê, não somente em mim, mas também naquele que me
enviou'” (João 12.44). Ora, quem diz ter fé, tem que ter a obra, ou seja, crer
em Cristo. Quem crê em Cristo crê no testemunho que Deus deu acerca do seu
Filho Jesus Cristo (1 João 5.10).
Muitos
judeus diziam que criam que Deus é um só, mas, apesar de ser bom crer na
existência de Deus, não consideravam que os demônios também criam e
estremeciam, mas, tal fé não salva os demônios.
O que
salva o homem é o mandamento de Deus, contido no evangelho: realizar a obra de
Deus, ou seja, crer em Cristo, não a disposição do homem em crer na existência
de Deus, ou em milagres, ou em anjos, ou no sobrenatural, ou na circuncisão, ou
na carne de Abraão, etc.
Quando
Tiago utiliza o termo ‘louco’, ‘insensato’, deixa evidente que estava tratando
com cristãos convertidos dentre os judeus. Os profetas utilizavam o termo
‘louco’, ‘ignorante’ para fazer referência aos filhos de Israel, e, Tiago ao
escrever às doze tribos da dispersão, escreveu a cristãos convertidos, dentre
os judeus (Deuteronômio 32.6; Jeremias 4.22).
Tiago
destaca que, somente dizer acreditar (fé) em Deus, sem obedecê-Lo (obras) é
inútil e utiliza a pessoa do patriarca Abraão como exemplo, que, ao oferecer o
seu único filho em holocausto, demonstrou confiar em Deus (Tiago 2.20).
O irmão
Tiago evidencia que Abraão foi justificado pelas obras, quando ofereceu o seu
filho Isaque sobre o altar (Tiago 2.21). Como? Ao dizer que Abraão foi
justificado pelas obras, isto não significa que Abraão foi justificado pelas
obras da lei, visto que à época do patriarca ainda não havia sido entregue a
lei aos filhos de Israel (Romanos 4.13). O apóstolo Paulo é específico: ninguém
é justificado ‘pelas obras da lei’, na verdade o homem é justificado pelas
obras, em função da lei (mandamento) da fé.
As
‘obras da lei’ referem-se à lei de Moisés, que é antagônica à ‘lei da fé’, ou
seja, ao mandamento do evangelho: crer em Jesus Cristo: "Onde está logo a
jactância? É excluída. Por qual lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé"
(Romanos 3.27). "Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da lei,
mas pela fé em Jesus Cristo, temos também crido em Jesus Cristo, para sermos
justificados pela fé em Cristo, não pelas obras da lei; porquanto pelas obras
da lei, nenhuma carne será justificada" (Gálatas 2.16).
Se
Abraão tivesse proposto de si mesmo fazer um sacrifício, oferecendo o seu filho
em holocausto, a sua ação não o justificaria. Mas, como Deus ordenou a Abraão
que oferecesse o seu único filho em holocausto (Genesis 22.2) e ele obedeceu ao
mando do Senhor, foi justificado por sua obra: a palavra de Deus operou nele:
"Por isso, também, damos, sem cessar, graças a Deus, pois, havendo
recebido de nós a palavra da pregação de Deus, a recebestes, não como palavra
de homens, mas (segundo é, na verdade), como palavra de Deus, a qual também
opera em vós, os que crestes" (1 Tessalonicenses 2.13).
Tudo o
que não é ordenado por Deus, é pecado e oferecer um filho em holocausto, sem
Deus ter ordenado, é pecado "... e tudo o que não é de fé é pecado"
(Romanos 14.23), pois o justo viverá da palavra de Deus, ou seja, da fé (Deuteronômio
8.3; Habacuque 2.4).
Abraão
foi justificado por ter colocado o seu único filho sobre o altar? Não! Foi
justificado por Deus, porque confiou que Deus era poderoso para ressuscitar o
seu filho, quando iria imolá-lo sobre o altar (Hebreus 11.19).
Ao
falar com Saul, Deus deixa claro que importa ao homem obedecer, não sacrificar.
(1 Samuel 15.22). Abraão demonstrou confiança em Deus, quando colocou o seu
filho sobre o altar para imolá-lo, o que demonstra que, quem confia, obedece. É
dito que Abraão foi justificado pelas obras, porque não se resignou em
acreditar na existência de Deus, antes realizou o que Deus ordenou.
Com
relação ao evangelho, o homem é salvo pela obra e não porque acredita que Deus
é um só. Qual a obra em questão? Crer que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus,
pois este é o mandamento de Deus, para todos os homens durante o tempo sobre
modo oportuno de salvação – hoje – (2 Coríntios 6.2).
Enquanto
de Abraão Deus exigiu o seu único filho, hoje, Deus exige de todos os homens
que creiam em seu Filho, Jesus Cristo. Abraão acreditava na existência de Deus,
e quando foi realizar a obra exigida por Deus, ficou claro que a sua crença na
existência e poder de Deus, cooperou com a sua obra, e assim, pela obra, a
confiança foi ‘aperfeiçoada’ (Tiago 2.22).
A
confiança do homem em Cristo é designada ‘perfeita’ (τελειόω - teleioó) quando
o crente realiza o que lhe foi determinado. O termo grego traduzido por
‘aperfeiçoada’ é τελειόω, e não tem o sentido de melhorar a confiança, antes
aponta para um quesito funcional: cumpre o propósito para o qual foi
estabelecida.
Enquanto
Tiago utilizou o termo ‘obra’, para fazer referência ao imperativo de obedecer
ao mandamento de Deus, o apóstolo João faz uso do termo ‘amor’ (ágape), para
fazer referência a esse mesmo imperativo.
“Bem
vês que a fé cooperou com as suas obras e que pelas obras, a fé foi
aperfeiçoada” (Tiago 2.22);
“No
amor não há temor, antes o perfeito amor lança fora o temor; porque o temor tem
consigo a pena e o que teme não é perfeito em amor” (1 João 4.18).
Considerando
que, quem ama a Deus, cumpre o seu mandamento (João 14.15 e 23 e 24), segue-se
que quem ama (obedece), não tem medo (temor), pois a obediência perfeita lança
fora o medo. O medo decorre da pena, de modo que, quem tem medo é porque não
obedeceu, de fato.
Pela
palavra de Deus que disse: “Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu
pai, para a terra que eu te mostrarei” (Genesis 12.1), ou seja, pela fé (a
palavra de Deus é firme fundamento, prova do que não se vê), Abraão obedeceu e
saiu, mesmo não sabendo para onde ia (Hebreus 11.8). A confiança só é perfeita
quando cumpre, exatamente, a finalidade: a obediência.
Quando
diz que o homem é justificado pela ‘fé’, o apóstolo Paulo está apontando para a
verdade do evangelho, que evidencia Cristo como o salvador do mundo. Quando diz
que Abraão foi justificado pelas obras, o irmão Tiago está apontando para o
mandamento de Deus, que diz: "Toma agora o teu filho, o teu único filho,
Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá e oferece-o ali em holocausto,
sobre uma das montanhas, que eu te direi" (Genesis 22.2).
Sem o
mandamento para imolar o filho, Abraão poderia crer na existência de Deus, mas
não seria aprovado. Sem o mandamento de Deus, para sair do meio da sua
parentela, Abraão poderia deixar pai e mãe, mas não seria herdeiro da promessa.
Abraão podia gerar um filho de suas entranhas, o que ocorreu com Hagar e
Quetura (Genesis 16.4; Genesis 25.1-2), porém, tal capacidade não o tornaria
pai de muitas nações.
É
significativo que, diante da promessa de que a sua descendência seria como as
estrelas do céu, Abraão nada fez, antes confiou em Deus, ao que isto lhe foi
imputado por justiça. Diante da palavra da promessa, que disse que Abraão teria
um filho com Sara (Genesis 17.19), a jactância foi excluída, pois não havia
nada que Abraão pudesse fazer para que Sara concebesse um filho.
Apesar
do questionamento de Abraão, de que era impossível a um homem com mais de cem
anos gerar filhos (Genesis 17.17), posteriormente, Abraão teve filhos com
Quetura (Genesis 25.1). Dos filhos que teve com Quetura, Abraão podia jactar-se
da sua carne, porém, do filho que teve com Sara, a promessa excluiu qualquer
possibilidade de jactância, pela impossibilidade inerente ao homem, e ao
oferecer sobre o altar o seu único filho, Abraão teve que, em figura,
recobrá-lo dentre os mortos (Romanos 3.27; Hebreus 11.19).
Sair do
meio da parentela era algo que Abraão podia fazer, mas, ao fazê-lo, indica que
ele se sujeitou, como servo, ao mandamento do Senhor. Oferecer Isaque sobre o
altar era algo que Abraão podia fazer, e o fez, demonstrando total submissão à
ordem de Deus. Agora, o nascimento de Isaque e a vinda do descendente, foram
estabelecidos pela palavra de Deus, ao que Abraão resignou-se a crer, pois, com
relação à promessa, nada podia fazer a não ser crer naquele que é fiel e não pode
mentir.
Fé com
obras
Por má
compreensão da exposição de Tiago, Martinho Lutero [6] chegou a classificar a
epístola de Tiago como ‘insossa’, ou ‘cheia de palha’.
Se não
compreender que o evangelho constitui um mandamento de Deus e que crer em Cristo
é realizar a Sua obra, dificilmente o leitor compreenderá a epístola de Tiago:
"Mas, nem todos têm obedecido ao evangelho; pois Isaías diz: SENHOR, quem
creu na nossa pregação?" (Romanos 10.16).
O
apóstolo Paulo, ao escrever a Tito, utiliza a mesma linguagem do apóstolo João
e Tiago:
"Confessam
que conhecem a Deus, mas negam-no com as obras, sendo abomináveis,
desobedientes e reprovados para toda a boa obra" (Tito 1.16);
“E
nisto sabemos que o conhecemos: se guardarmos os seus mandamentos. Aquele que
diz: Eu o conheço, mas não guarda os seus mandamentos, é mentiroso e nele não
está a verdade” (1 João 2.3-4).
Dizer
que ‘conhece a Deus’ e ‘negar com as obras’, tem o sentido de honrar a Deus
somente com a boca e com os lábios, vez que tal pessoa não guarda o mandamento
de Deus (temor). É crer (ter fé) sem as obras (obediência e honra). Os filhos
de Israel se aplicavam a um temor que não era o princípio da sabedoria, antes
era mandamento de homens: "Porque o Senhor disse: Pois que este povo se
aproxima de mim, com a sua boca e com os seus lábios me honra, mas o seu
coração se afasta para longe de mim e o seu temor para comigo, consiste só em
mandamentos de homens, em que foi instruído" (Isaias 29.13).
Primeiro,
é dada a palavra da fé, ou seja, o evangelho (Romanos 10.8). A palavra da fé é
condicionada, vez que ‘se com a tua boca confessares ao Senhor Jesus, e em teu
coração creres, que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo’ (Romanos
10.9).
A
palavra implantada é fé e a condição estabelecida é crer, de modo que
possibilita ao homem crer para a justiça e confessar para ser salvo (Romanos
10.10). A confissão é o fruto dos lábios de um coração que recebeu a semente
incorruptível, a palavra da fé (Hebreus 13.15; 1 Pedro 1.23).
A obra
exigida de Deus, dos homens, é crer no coração (intelectualmente), que Deus
ressuscitou a Jesus dentre os mortos e, com a boca, confessá-lo como Senhor e
Cristo. Essa obra decorre da palavra da fé apregoada: “Porque esta palavra está
mui perto de ti, na tua boca, e no teu coração, para a cumprires” (Deuteronômio
30.14). Por isso é dito: Cri, por isso falei (Salmos 116.10), pois com a boca
se confessa e com o coração (mente) se crê.
O
exemplo que Tiago apresenta, através de Raabe, se dá da mesma forma que com o
cristão, pois ela ouviu que Deus havia dado a Israel a terra onde estava a
cidade de Jericó, bem como ouviu que Deus secou as águas do Mar Vermelho e o
que foi feito dos povos que se opuseram aos filhos de Israel, após a travessia
do Jordão, de modo que Raabe concluiu que Deus é Deus em cima nos céus e
embaixo na terra (Josué 2.11).
Raabe
ouviu e creu em Deus, a ponto de confessar aos espias os seus temores e pedir
por misericórdia (Josué 2.11-13). Por crer que Deus é Deus encima nos céus e
embaixo na terra, pelo que ouviu acerca dos feitos dos filhos de Israel, Raabe
acolheu os espias no eirado da sua casa e os despediu por outro caminho (Tiago
2.25).
A
informação que Raabe ouviu, acerca dos filhos de Israel, era firme e
verdadeira, pelo que é dito: “Pela fé Raabe, a meretriz, não pereceu com os
incrédulos, acolhendo em paz os espias” (Hebreus 11.31). Pela informação que
recebeu, acerca do povo de Israel e do Deus que tirou o povo da terra do Egito,
ou seja, pela fé (πίστις-pistis), Raabe tomou a iniciativa de acolher em paz os
espias (obra).
Seria
sem proveito, Raabe dizer que acreditava no evento histórico em que Deus secou
as águas do Mar Vermelho, se não tivesse rogado por misericórdia aos espias.
Seria sem proveito Raabe confessar que Deus é Deus nos céus e na terra sem se
sujeitar a Ele, servindo aos espias.
Se
entender o termo ‘fé’, segundo o que é usual em nossos dias, Raabe seria uma
mulher de fé, se ela acreditasse que não seria atingida pela guerra, ou em
algum absurdo ou em algum evento mágico. Nesse diapasão, a fé de Raabe deveria
se opor à razão, ou como propuseram: ‘credo quia absurdum’ (creio, porque é
absurdo).
Semelhantemente,
Abraão foi justificado quando ofereceu sobre o altar o seu filho Isaque. Ora,
oferecer um filho em holocausto é um absurdo, porém, Abraão o fez pela fé, ou
seja, apoiado na palavra de Deus, que disse: “Toma agora o teu filho, o teu
único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em
holocausto sobre uma das montanhas, que eu te direi” (Genesis 22.2). Ele
ofereceu o seu único filho, porque era a palavra de Deus e não porque era
absurdo.
Embora
Deus tenha ordenado a Abraão que oferecesse o seu único filho em holocausto,
Abraão considerou a palavra que diz: “Em Isaque será chamada a tua descendência”
(Hebreus 11.18). Sem Isaque não havia descendência, e nem viria o Descendente,
pelo que se entende que ele considerou que “Deus era poderoso para, até dentre
os mortos, ressuscitar a seu filho e daí, também, em figura ele o recobrou” (Hebreus
11.18-19).
É pela
fé, ou seja, pela palavra de Deus, que diz: ‘Em Isaque seria chamada a sua
descendência’, que Abraão foi aprovado por Deus. Por causa dessa promessa:
“Como está escrito: Por pai de muitas nações te constituí” (Romanos 4.17),
Abraão creu que Deus vivifica os mortos e que chama à existência as coisas que
não são, como se já fossem, vez que Deus teria que cumprir a Sua palavra (Romanos
4.21).
Sem a
palavra de Deus (fé), seria impossível Abraão ter a esperança de que o seu
descendente (Cristo), viria ao mundo, quando colocou o seu único filho sobre o
altar (creu contra a esperança).
“Pela
fé, ofereceu Abraão a Isaque, quando foi provado; sim, aquele que recebera as
promessas ofereceu o seu unigênito. Sendo-lhe dito: Em Isaque será chamada a
tua descendência, considerou que Deus era poderoso para, até dentre os mortos,
ressuscitá-lo; E daí também, em figura, ele o recobrou” (Hebreus 11.17-19)
Abraão
tinha fé em Deus (cria na existência de Deus) e executou a obra que Deus mandou
realizar, ou seja, a fé (crer) cooperou com as obras, de modo que, pelas obras
de Abraão a fé (crer) foi aperfeiçoada, ou seja, cumpriu o seu propósito.
Identificando
um erro na pergunta: "A salvação é somente pela fé ou pela fé, mais as
obras?"
Há quem
acredite que essa é a pergunta mais importante, em toda a Teologia Cristã.
Outros, que essa pergunta motivou a Reforma: a separação entre a igreja
Protestante e a igreja Católica, entretanto, não atentam para o fato de que há
um erro na pergunta, que leva a um entendimento equivocado, acerca da fé e das
obras.
Quando
é perguntado: ‘A salvação é somente pela fé...?’, é essencial que se dê o
significado do termo ‘fé’ na frase. Se o significado de fé for ‘crer’, jamais a
salvação é somente pelo ‘crer’.
Quando
a Bíblia apresenta a salvação somente pela fé, na verdade está dizendo que a
salvação é somente por Cristo, ou seja, pelo evangelho. Não existe outra
alternativa que não seja o evangelho (fé). A alternativa “... ou pela fé mais
as obras?", inexiste!
Quando
questionam: "A salvação é pela fé mais as obras?", geralmente, os
termos ‘fé’ e ‘obras’ não possuem o mesmo significado que o empregado pelo
irmão Tiago no verso: “Vedes então que o homem é justificado pelas obras, e não
somente pela fé” (Tiago 2.24). Tiago diz que ‘o homem é justificado pelas
obras, e não somente pela fé’, o que é completamente diferente da ideia que a
pergunta sugere: ‘Salvação é pela fé, mais as obras’.
Para
quem construiu a pergunta, obras possui o significado de ‘boas ações’, ‘bom
comportamento’ e até de ‘frutos’, questões que o irmão Tiago não aborda neste
verso em comento. O homem é salvo ‘apenas’ quando crê em Cristo, pois crer em
Cristo é o suficiente para ser salvo, uma vez que quem salva é Cristo.
Quem
crê em Cristo, produziu a obra exigida por Deus, de modo que Tiago não está
dizendo que, para ser salvo, é necessário ter fé (crer) e fazer boas ações
(obras). É um equivoco entender que Tiago ‘enfatizou o fato de que a fé em
Cristo produz boas obras’[7].
Tiago
não faz referência à fé em Cristo, antes à ‘justificação pelas obras’, que na
verdade, é crer em Cristo. Quando ele diz: ‘não somente pela fé’, Tiago não se
refere à fé, como a verdade do evangelho, mas, sim, a alguém dizer que crê em
Deus, mas que não realiza a sua obra (mandamento).
Realizar
boas ações (boas obras) não é prova de que o homem foi verdadeiramente
justificado, antes o justificado já produziu a obra exigida por Deus, e Deus,
por sua vez, gerou um novo homem, através da semente incorruptível, criado em
verdadeira justiça e santidade. O bom porte, o bom comportamento, as boas
ações, etc., não decorrem da fé (crer) em Cristo, antes, o bom comportamento se
dá quando o homem é admoestado e redarguido, e muda o seu comportamento, pelo
transformar do entendimento (Romanos 12.2; 1 Pedro 1.13-14).
A
segunda parte da pergunta é equivocada e também induz ao erro, pois Tiago diz
que o homem é justificado pelas obras (crer em Cristo), não pela fé (crer em Deus). Em momento algum
Tiago aponta para uma salvação pela ‘fé mais as obras’, antes ele apresenta a
salvação pelas obras (obediência ao mandamento de Deus) que decorrem da fé
(crer) em Cristo.
Conclusão:
“Em suma: o evangelho, segundo João e sua
primeira epístola, as epístolas de Paulo, particularmente, as dirigidas aos
romanos, gálatas, efésios, e a primeira epístola de Pedro, estes são os livros
que lhe apresentam Cristo e lhe ensinam tudo que é necessário e bom saber,
ainda que jamais visse ou ouvisse qualquer outro livro ou doutrina. qualquer
forma, não tem natureza evangélica. Mas disso ainda falaremos em outros
prefácios” Lutero, Martinho. Pelo Evangelho de Cristo: Obras selecionadas de
momentos decisivos da Reforma. “Embora esta epístola de São Tiago fosse
rejeitada pelos anciãos, eu elogio-a e considero-a um bom livro, porque estabelece
não doutrinas de homens, mas vigorosamente promulga a lei de Deus. No entanto,
afirmo a minha própria opinião sobre isso, embora sem prejuízo para ninguém, eu
não considero como uma escrita de um apóstolo, e as minhas razões seguem. Em
primeiro lugar, é terminantemente contra São Paulo e todo o resto da Escritura
em atribuir a justificação às obras. Ela diz que Abraão foi justificado por
suas obras, quando ofereceu seu filho Isaac, embora em Romanos, São Paulo
ensine o contrário, que Abraão foi justificado sem as obras, por sua fé, antes
que ele tivesse oferecido seu filho, e prova isso por Moisés em Gênesis 15.
Agora, embora esta epístola pode ser ajudada e uma interpretação concebida para
essa justificação pelas obras, não pode ser defendida em sua aplicação às obras
da declaração de Moisés em Gênesis 15. Pois, Moisés está falando aqui apenas da
fé de Abraão, e não de suas obras, como São Paulo demonstra em Romanos. Esta
falha, portanto, prova que esta epístola não é o trabalho de qualquer apóstolo”
Lutero, Martinho. Prefácio à tradução alemã das Epístolas de S. Tiago e S.
Judas, em 1522.
“Tiago
e Paulo não discordam em seus ensinamentos sobre a salvação. Eles abordam o
mesmo assunto sob diferentes prismas. Paulo, simplesmente, enfatizou que a justificação
vem somente pela fé, enquanto Tiago enfatizou o fato de que a fé em Cristo
produz boas obras”.
Deus te
abençoe.
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