Dou graças ao meu Deus, porque falo mais línguas do que vós todos.
Todavia eu antes quero falar na igreja cinco palavras na minha
própria inteligência, para que possa também instruir os outros, do que dez mil
palavras em língua desconhecida.
1
Coríntios 14.18-19
É
inegável o flagrante abuso do dom de línguas em nossos dias. Para alguns, o
simples fato de possuírem o dom já os torna superiores ou mais espirituais que
os demais. Ledo engano. A começar pelo fato de que o dom de línguas jamais foi
evidência do batismo com o Espírito Santo, como em geral tem sido entendido
atualmente. Na mesma passagem em que Paulo afirma que todos “fomos batizados em
um só Espírito” (1 Co.12:13), ele pergunta: “Falam todos em outras línguas?
Interpretam-nas todos?” (v.30b). Tal pergunta não faria sentido se a resposta
fosse sim. Concluímos daí que nem todos os que são batizados no Espírito
manifestam o dom de línguas. O que evidencia o batismo no Espírito é o profundo
amor que é derramado em nossos corações. Confira:
“E a
esperança não traz confusão, porquanto o amor de Deus está derramado em nossos
corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.” Romanos 5:5
Se o
falar em línguas fosse mais importante que isso, Paulo não teria dito: “Ainda
que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria
como o metal que soa ou como o sino que tine” (1 Co.13:1). Portanto, é
preferível o amor sem línguas a línguas sem amor. O dom pode ser bom, mas o
amor é o caminho mais excelente (1 Co.12:31). E mesmo quando todos os dons perderem
a sua validade, o que permanecerá serão a fé, a esperança e o amor, “mas o
maior destes é o amor” (1 Co.13:13). Não dá para rivalizar o menor dos dons com
a maior das virtudes. Línguas sem amor não passam de barulho. Por mais que
impressione os homens, não agrada a Deus.
A
segunda verdade que precisamos considerar sobre o assunto é que todo cristão
verdadeiramente regenerado pelo Espírito recebeu o batismo e o selo no momento
em que creu no Evangelho. Leia atentamente:
“Em
quem também vós estais, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho
da vossa salvação; e, tendo nele também crido, fostes selados com o Espírito
Santo da promessa.” Efésios 1:13
Não se
trata de uma experiência posterior à conversão, mas concomitante a ela. O que
geralmente tem sido identificado como “batismo no Espírito Santo” é uma espécie
de êxtase seguida da manifestação do dom de línguas. Não me atrevo a questionar
a legitimidade da experiência, porém, recuso-me a chamá-la de batismo no
Espírito.
Apesar
de batizados no momento em que cremos, somos conclamados a encher-nos
constantemente do Espírito (Ef. 5:18). Esta, portanto, é uma experiência que
deve ser contínua na vida do cristão e
que deve ser buscada incessantemente. Encher-se do Espírito não é receber uma nova
medida d’Ele, ou uma porção extra de Sua presença, mas sim submeter-nos cada
vez mais à Sua vontade. Para receber porção dobrada do Espírito Santo, Ele
teria que Se multiplicar por dois. Lembre-se que Ele é uma pessoa, não algo que
possa ser medido. Deus não nos dá do Seu Espírito por medida (Jo.3:34).
Portanto, ou O recebemos por inteiro, não O recebemos. Todavia, quanto mais nos
submetemos a Ele, mas nos enchemos de Sua presença amorosa. Não se trata de
receber mais d’Ele, e sim de Ele receber mais de nós.
Voltando
à questão das línguas, importa verificar à luz das Escrituras que falar em
línguas não nos torna mais espirituais. Os coríntios, para os quais Paulo
enviou duas cartas, possuíam todos os dons do Espírito em abundância, porém,
foram classificados como carnais (confira 1 Co.1:7; 3:1). Provavelmente, a
igreja de Corinto era uma das mais pentecostais/carismáticas/renovadas de seu
tempo. Sobrava carisma, faltava caráter.
O fato
de Deus nos conferir um dom que não deu a outros não nos torna superiores, e
sim servos dos demais. Não custa lembrar a exortação de Jesus: “E, a qualquer
que muito for dado, muito se lhe pedirá, e ao que muito se lhe confiou, muito
mais se lhe pedirá” (Lc. 12:48).
Devido
à mentalidade predominante em alguns círculos, onde falar em línguas tornou-se
sinônimo de status, muito abuso tem sido cometido. Quem fala em línguas quer
tornar isso notório, e para isso, não hesita em falar em alto e bom som durante
os cultos. Alguns, no afã de chamarem ainda mais atenção, acrescentam
manifestações bizarras como pulos, sapateados, tremedeiras, gritos, espasmos,
etc. Tal exagero já ocorria na igreja de Corinto, resultando no apelo de Paulo
por sua correção:
“Dou
graças ao meu Deus, porque falo mais línguas do que vós todos. Todavia eu antes
quero falar na igreja cinco palavras na minha própria inteligência, para que
possa também instruir os outros, do que dez mil palavras em língua
desconhecida. Irmãos, não sejais meninos no entendimento, mas sede meninos na
malícia, e adultos no entendimento (…) Se, pois, toda a igreja se congregar num
lugar, e todos falarem em línguas, e entrarem indoutos ou infiéis, não dirão
porventura que estais loucos?”1 Coríntios 14:18-20, 23
Paulo
jamais usou o dom para exibir-se, e não encorajava ninguém a fazê-lo. Quer
falar em línguas, fale consigo mesmo. Que razão haveria para alguém falar em
línguas publicamente sem que houvesse interpretação? Quem seria beneficiado com
isso? Se verdadeiramente somos batizados no Espírito, o amor derramado em
nossos corações fará com que nos preocupemos muito mais com os outros do que
conosco mesmo. O que um visitante vai pensar ao ver-nos exibindo nossos dotes
espirituais? Que benefício nossos irmãos terão daquilo que dissermos em línguas
estranhas?
A única
concessão que Paulo faz à manifestação pública do dom de línguas é no caso de
haver quem as interprete.
“E, se
alguém falar em língua, faça-se isso por dois, ou quando muito três, e por sua
vez, e haja intérprete. Mas, se não houver intérprete, esteja calado na igreja,
e fale consigo mesmo, e com Deus.” 1 Coríntios 14:27-28
O
intérprete nem sequer precisa ser uma terceira pessoa. Se o próprio indivíduo
puder interpretar os anseios produzidos pelo Espírito em Seu coração, ele
poderá expressá-los em seu próprio vernáculo.
Não
confundamos os dons. Línguas nada têm a ver com profecias. Quem profetiza fala
aos homens. Quem fala em línguas fala exclusivamente a Deus. Então, por que
careceria de intérprete? Para que os demais possam dizer “amém”. As línguas
sempre visam a edificação de quem as fala, nunca a de outros. Mesmo quando
interpretadas, seguem edificando quem as fala, porém, dá aos demais a
oportunidade de colaborarem nesta edificação com sua concordância.
Dois extremos
precisam ser evitados. O primeiro é a
desordem, onde todos falam em línguas em alta voz, sem qualquer preocupação com
a edificação do outro. O outro extremo igualmente perigoso é proibir qualquer
manifestação do dom. Eis a recomendação apostólica:
“Portanto,
irmãos, procurai, com zelo, profetizar, e não proibais falar línguas. Mas
faça-se tudo decentemente e com ordem.” 1 Coríntios 14:39-40
Como
recebê-lo?
Todos
os dons estão disponíveis para o Corpo de Cristo. Todavia, Deus os distribui
conforme o Seu propósito. Cada membro recebe dons através dos quais será útil
aos demais.
“Ora,
há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de
ministérios, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade de operações, mas é o
mesmo Deus que opera tudo em todos. Mas a manifestação do Espírito é dada a
cada um, para o que for útil. Porque a um pelo Espírito é dada a palavra da
sabedoria; e a outro, pelo mesmo Espírito, a palavra da ciência; e a outro,
pelo mesmo Espírito, a fé; e a outro, pelo mesmo Espírito, os dons de curar; e
a outro a operação de maravilhas; e a outro a profecia; e a outro o dom de
discernir os espíritos; e a outro a variedade de línguas; e a outro a
interpretação das línguas. Mas um só e o mesmo Espírito opera todas estas
coisas, repartindo particularmente a cada um como quer.”1 Coríntios 12:4-11
Portanto,
o propósito de Deus deve prevalecer sobre a vontade humana. Entretanto, não
podemos nos esquecer de que “Deus é o que opera em vós tanto o querer como o
efetuar, segundo a sua boa vontade” (Fl.2:13). De maneira que um desejo ardente
de receber algum dom pode ser gerado pelo próprio Espírito e, por isso, deve
ser buscado. Caso contrário, que sentido haveria na admoestação de Paulo para
que busquemos “com zelo os melhores dons” (1 Co. 12:31)?
Porém,
antes de buscarmos qualquer dom, devemos verificar quais são nossas reais
motivações. Se forem a glória de Deus e o serviço aos nossos semelhantes, mui
provavelmente tenham sido despertadas pelo Espírito. Mas se formos motivados
por vaidade pessoal, porfia, inveja, ciúmes, Deus certamente não nos atenderá.
Autor:
Hermes C. Fernandes
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